Ciência — 27 fevereiro 2013

                        Há mais de 60 anos era anunciado a descoberta e a comprovação da existência da partícula subatômica méson pi

No dia 24 de maio de 1947, o mundo foi informado de que, ao contrário do que aprendemos na escola, a composição do átomo não se resume a nêutrons, prótons e elétrons. Um dos autores dessa pesquisa foi o físico brasileiro César Lattes. Todos sabem que essa foi uma importante descoberta. Mas, afinal, o que são realmente esses tais de mésons pi? E o que mudou na física, quando eles foram encontrados?

Cesare Mansueto Giulio Lattes, mais conhecido simplesmente como César Lattes, (Curitiba, 11 de julho de 1924 — Campinas, 8 de março de 2005) foi importante físico brasileiro, co-descobridor do méson pi. 

 A descoberta do méson pi foi um passo fundamental na compreensão do mundo sub-atômico. Ao longo do século XX, as idéias sobre a matéria foram se tornando gradualmente mais complexas. Os átomos são constituídos por elétrons e núcleos. O núcleo contém partículas de carga positiva (prótons) e outras sem carga elétrica (nêutrons). O que prende os prótons e os nêutrons uns aos outros para formar o núcleo? Eles não podem se atrair eletricamente – pelo contrário, os prótons se repelem uns aos outros. As forças gravitacionais são muito menores do que as forças elétricas repulsivas. Era necessário supor um novo tipo de forças nucleares, mais fortes do que a repulsão elétrica, para manter a coesão do núcleo.

Yukawa e Lattes

 Em 1935, Hideki Yukawa propôs uma teoria para explicar as forças nucleares. Ele sugeriu a existência de uma partícula ainda desconhecida, com uma massa cerca de 200 vezes maior do que a do elétron, que poderia ser emitida e absorvida por prótons e nêutrons. A troca dessa partícula entre os constituintes do núcleo atômico produziria uma atração entre eles, de curto alcance, que poderia explicar a estabilidade nuclear. Por ter uma massa intermediária entre a do elétron e a do próton, recebeu o nome de “méson”. Essas partículas só poderiam existir durante um tempo muito curto, e se desintegrariam fora do núcleo atômico, depois de apenas um bilionésimo de segundo.
Em 1937-38, Carl D. Anderson e Seth H. Neddermeyer encontraram na “radiação cósmica”, que continuamente atinge a Terra, os sinais de algo que parecia ser o méson de Yukawa: tinha uma massa adequada, e se desintegrava do modo previsto. Durante quase dez anos, parecia que tudo se encaixava e que se dispunha de uma boa teoria sobre a constituição da matéria. Em 1947, no entanto, essa tranqüilidade foi derrubada. Descobriu-se que o méson de Anderson e Neddermeyer não tinha o comportamento previsto.
Para poderem explicar as forças nucleares, os mésons deveriam ser fortemente absorvidos por prótons e nêutrons. Previa-se, portanto, que eles fossem facilmente capturados pela matéria. No entanto, um grupo de pesquisadores italianos (Marcello Conversi, Ettore Pancini e Oreste Piccioni) observou que os mésons que haviam sido encontrados na radiação cósmica podiam atravessar centenas de núcleos atômicos sem sofrer nenhuma alteração. Eles tinham uma interação muito fraca com prótons e nêutrons, ao contrário do que se esperava;  alguma coisa estava errada.

O grupo de Bristol: Powell está de terno, ao fundo; à sua frente (no meio), Lattes.
Occhialini é o segundo da direita para a esquerda, na frente

É aí que entra a contribuição do grupo ao qual pertenceu Lattes. Em 1946, uma equipe de pesquisadores de Bristol (Inglaterra), sob a direção de Cecil F. Powell, estava estudando os traços produzidos por reações nucleares em certas chapas fotográficas especiais, mais grossas e mais sensíveis, chamadas “emulsões nucleares”. Pela análise dos rastros lá deixados por prótons e outras partículas carregadas, é possível determinar a sua energia e massa. Beppo Occhialini e César Lattes analisaram algumas emulsões de um novo tipo, que haviam sido colocadas no alto de uma montanha (o Pic du Midi). Ao revelar e analisar as emulsões, observaram grande número de traços deixados por partículas que interpretaram inicialmente como sendo os mésons já conhecidos. No entanto, após alguns dias de estudo, foram encontrados dois traços especiais, de mésons que iam diminuindo de velocidade e parando; do final desses traços brotava um rastro de um novo méson.

   O que era aquilo? Havia várias interpretações possíveis. Podia ser que o méson tivesse reagido com um núcleo dentro da emulsão e tivesse sido expelido com uma maior velocidade; ou poderia ter havido uma transformação de um méson em outro. Os dois primeiros casos eram insuficientes para se tirar qualquer conclusão segura. Para obter maior número de dados, Lattes viajou para a Bolívia, e colocou no alto do Monte Chacaltaya, a uma altitude de 5.500 metros, várias emulsões nucleares. Nelas, foi possível encontrar cerca de 30 rastros de mésons duplos. Estudando esses traços, foi possível determinar a massa dos mésons e perceber que havia dois tipos de partículas, com massas diferentes.
Existia um tipo de méson que era cerca de 30 a 40% mais pesado do que o outro. Ele se desintegrava e produzia o méson mais leve. A partícula secundária  era a que já era conhecida pelos estudos de Anderson e Neddermeyer, e passou a ser chamada de méson mi (atualmente, é chamado de múon). O méson primário, mais pesado, era algo novo, desconhecido. Foi denominado méson pi, e sua identificação foi anunciada em outubro de 1947. Estudos posteriores mostraram que ele tinha uma forte interação com o núcleo atômico, possuindo as características exigidas pela teoria de Yukawa. Haviam sido encontradas as partículas responsáveis pelas forças nucleares.
Essa descoberta não foi, no entanto, a mera confirmação de uma teoria. Ela abriu todo um novo mundo de investigações. Primeiramente, ficava claro que existiam partículas (os múons) que não haviam sido previstas antes, e que não tinham um papel conhecido na natureza. Em segundo lugar, porque o estudo da radiação cósmica logo levou à descoberta inesperada de muitas outras partículas. Naquele mesmo ano, começaram a ser observados rastros que não correspondiam a nada de conhecido.

O laboratório do Monte Chacaltaya, em construção

O próprio grupo de Powell encontrou alguns sinais de mésons duas vezes mais pesados do que os píons. Foram chamados inicialmente de mésons tau, e atualmente são denominados mésons kappa. Ainda em 1947, Clifford Butler e George Rochester observaram traços em forma de V, que podiam ser explicados supondo a existência de novas partículas neutras (sem carga elétrica), que não deixam traço, e que se desintegram em uma partícula positiva e outra negativa. Nos anos seguintes, foi surgindo uma avalanche de novas partículas, todas elas inesperadas, e com propriedades difíceis de serem compreendidas, na época. Robert Oppenheimer introduziu a expressão “zoológico sub-nuclear” para esse novo mundo de partículas. Entre os animais exóticos desse zoológico, foram encontradas partículas mais pesadas do que o próton (os “híperons”), de vários tipos diferentes. A nova fauna foi inicialmente explorada pelo estudo de raios cósmicos, mas logo foram construídos aceleradores de partículas cada

vez mais poderosos, que permitiram a criação e investigação dessas partículas em laboratório.
Mais do que encontrar uma partícula em especial, a descoberta do méson pi marcou o início de uma revisão dos conceitos físicos sobre a estrutura da matéria. A grande variedade de partículas descobertas nos anos seguintes colocou em dúvida o conceito de “partícula elementar” como algo indivisível, simples, e levou à procura de uma estrutura para os próprios prótons, mésons e outras partículas. A teoria dos quarks jamais teria surgido sem o estímulo dessas descobertas, desencadeadas há 60 anos.

Texto ;revista Nature

Edit./J.Coutinho

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